Américas se tornam o epicentro do caos do clima

Por Ana Lucia Azevedo

Extra - O Globo



Photo by Marcus Kauffman on Unsplash


RIO — O rosto de um planeta desfigurado pelo desequilíbrio no clima emergiu nas últimas semanas nas Américas. A do Norte arde num calor sem precedentes, capaz de derreter cabos de alta tensão e rachar o asfalto em cidades dos EUA e do Canadá. A do Sul congela numa massa de ar frio com força para cobrir a Amazônia e literalmente romper o inverno e invadir o verão, ao ultrapassar a linha do Equador.


Como se não bastasse, veio Raoni, um quase-furacão, um ciclone subtropical, que subverteu os padrões da natureza e se formou no Atlântico Sul simultaneamente à massa fria. Trata-se do primeiro registro de um ciclone do tipo no inverno do Hemisfério Sul.


Extremos de calor e frio são a marca registrada das mudanças do clima, observa o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral de Operações e Modelagem do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

— Os extremos estão se tornando mais frequentes, principalmente os de calor, embora as ondas de frio radical também tenham sido previstas e estão se concretizando. Esse é o cenário que a ciência previu e infelizmente estamos vendo acontecer simultaneamente. O que acontece nas Américas hoje dá uma amostra de para onde caminhamos — explica Seluchi.


O novo normal do clima se manifesta em diferentes formas de extremos. A massa fria, chamada de polar, mas que, na verdade, segundo Seluchi, se formou na Patagônia, é um deles. Ela chama a atenção dos cientistas não por recordes de temperaturas baixas — embora -14,8°C tenham sido registrados numa estação meteorológica do Parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro, no dia primeiro de julho. O que impressiona é o tamanho da massa de ar frio e a sua persistência, da frente formada semana passada.

Ela se estendeu da Patagônia, no extremo sul do continente, à Venezuela, fazendo as temperaturas despencarem em cidades normalmente quentes, como Cuiabá e Maceió.

— É muito raro uma frente fria ter força para ultrapassar a linha do Equador. Mas esta saiu do inverno para o verão, de um hemisfério a outro. Ela teve força para atravessar o Norte da Amazônia e levou a uma queda de 3°C a 4°C. Parece pouco, mas é muito para essa região — explica Seluchi.


Trata-se, literalmente, de uma tempestade perfeita. A frente se deslocou rapidamente e, assim, não se aqueceu pelo caminho, derrubando as temperaturas por onde passava. Ela também viajou pelo interior do continente, mais frio que o mar. A combinação de rapidez com caminho certeiro fez os brasileiros tiritarem de frio do Chuí ao Oiapoque.

— O mais extraordinário dessa frente foi ter praticamente atingido todo o Brasil, coberto a Amazônia. Ela provocou chuvas no Mato Grosso, outra raridade para a época do ano — afirma Seluchi.


A frente fria no Brasil perde a força, mas o calor continua a provocar estragos e mortes na América do Norte e se estende esta semana para a Escandinávia, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM). A onda de calor é sem precedentes, e fez lugares notoriamente frios, como Portland, no Oregon (EUA), e Toronto, no Canadá, sufocarem por dias seguidos de temperaturas superiores a 45°C.


O climatologista Larry O’Neill, da Universidade do Oregon, disse ao site Science News que a sequência de recordes de anos mais quentes indica que ondas de calor assim se tornarão mais comuns. Serão o novo normal, para o qual o mundo não está preparado. O’Neill lembrou que, quando os serviços de previsão do tempo alertaram para os recordes de calor, muita gente achou que haviam enlouquecido, mas estavam certos.

Igualmente esquisito, como os próprios meteorologistas têm se referido a ele, é o ciclone Raoni. Ele se formou na noite de 28 de junho, a cerca de 300 quilômetros da costa do Uruguai, e logo mostrou sua bizarrice. Tinha um olho à semelhança dos furacões e surgiu em lugar e época improváveis. Com ventos de 100 km/h, ele não chegou a causar danos porque não se aproximou do continente, mas lançou uma ressaca no litoral Sul e Sudeste do Brasil até se desmanchar, em 1º de julho.


O professor de meteorologia da Universidade Federal de Santa Maria e especialista em fenômenos extremos Ernani Nascimento explica que ciclones se alimentam de calor e este surgiu não apenas sob uma massa de frio intenso quanto fora de época — costumam ocorrer no fim do verão e no início do outono. Segundo Nascimento, Raoni foi alimentado possivelmente pelas águas excepcionalmente quentes do oceano para esta época do ano.


— Termos ao mesmo tempo neve no Sul do Brasil e um ciclone subtropical no oceano, um fenômeno típico do calor, não é algo que se espere ocorrer normalmente — acrescenta Nascimento.


É um fenômeno bizarro, nas palavras de cientistas, que já começaram a estudá-lo. De tão bizarro, sequer há consenso se é subtropical, como classificaram instituições meteorológicas brasileiras, ou tropical, como considerou a Noaa, a Agência de Oceanos e Atmosfera dos EUA. O ciclone foi batizado de Raoni, ou "grande guerreiro" em tupi-guarani, de acordo com a lista da Marinha brasileira para tempestades atípicas.


Raoni já se desfez no Atlântico Sul, na latitude do Rio de Janeiro, mas no Atlântico Norte, outra tempestade, Elsa, causa medo e transtornos. Trata-se do primeiro furacão de uma temporada que vai até novembro e promete ser particularmente violento este ano.

— Não há a menor dúvida que com ou sem pandemia, o clima voltará a dominar a atenção do mundo — diz Nascimento.

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